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A primeira década da lei de cotas no Brasil

Por Camila Galvão, Marina Rocha dos Santos e Carla Oliveira Fernandes Silva

Racismo, discriminação e a desigualdade social são algumas das inúmeras  agressões que os indivíduos negros vivenciam, diariamente, no decorrer de sua trajetória de vida.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu em seu Art. 3º, como objetivos fundamentais da República: “construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem-estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Diante disso, foi estabelecido pelos Constituintes, explicitamente, que o Estado detém o dever de aplicar medidas necessárias para combater preconceitos e discriminações, eliminar a desigualdade social, bem como promover oportunidades aos grupos historicamente vulneráveis, para que assim, esse segmento possa ascender socioeconomicamente.

Nesse viés, é indiscutível dizer que a institucionalização de ações afirmativas é um instrumento para o Estado Democrático de Direito atingir a igualdade de fato, tendo em vista as históricas injustiças que ocorreram na sociedade brasileira contra as minorias sociais identificadas como negros, indígenas, mulheres, pessoas com deficiência e indivíduos LGBTQIA+. 

Em 29 de agosto de 2012, foi promulgada a Lei nº 12.711, cujo objetivo era  reservar 50% das vagas em Instituições Federais de Educação Superior para pessoas que cursaram o ensino médio integralmente em escolas públicas, sendo essas vagas preenchidas por pessoas autodeclaradas pretas, pardas e indígenas, além daquelas  com deficiência e sujeitos com renda per capita inferior a meio salário-mínimo. 

Em 2022, tal lei completará dez anos desde a sua promulgação. Neste mesmo marco temporal, o texto traz a previsão de revisão do dispositivo legal ou da sua possível manutenção. Nesse sentido, entendemos que a revisão da referida lei deve ser realizada para a inserção de dois pontos de grande relevância que visam ampliar o ingresso de indivíduos marginalizados no ensino público: primeiro, a inclusão de mecanismos assistenciais para a manutenção dos estudantes cotistas no ensino acadêmico, e segundo, a implementação de medidas para combater as fraudes de candidatos que se autodeclaram pretos, pardos e indígenas sem, efetivamente, pertencerem a esse segmento.

Nesse sentido,  cumpre mencionar que não basta a inserção de pessoas periféricas no ambiente acadêmico pelo sistema de cotas em si, pois é necessário oferecer meios para a permanência desses estudantes no sistema educacional, com medidas como apoio pedagógico, emocional e auxílio financeiro para a manutenção dos alunos negros nos institutos de ensino, mitigando, assim, as taxas de evasão escolar por razões financeiras, visto que a realidade enfrentada por muitos indivíduos à margem: a saída da instituição de ensino sem a conclusão do ciclo básico pela busca de empregos não qualificados para subsistência. 

A Lei n.º 12.711 é omissa ao não prever formas de fiscalização para validação da autodeclaração racial. Nesse sentido, algumas instituições de ensino superior adotaram mecanismos de segurança como as comissões de heteroidentificação, estas são “método[s] de identificação étnico-racial de um indivíduo a partir da percepção social de outra pessoa”. Assim, com o fim de mitigar as fraudes raciais, os candidatos que se autodeclaram pretos, pardos e indígenas no decorrer do processo seletivo para o ingresso ao ensino superior, são analisados por uma comissão a partir de critérios fenótipos e documentais, a fim de diminuir o acesso de fraudadores no ensino superior.

Vale mencionar que mesmo após a implementação da lei de cotas no Brasil, estudos do IBGE (“Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística”) mostram que “entre [os anos de] 2016 e 2018, “a proporção de estudantes [negros] de 18 a 24 anos de idade cursando ensino superior, passou de 50,5% para 55,6%. Esse patamar, contudo, ainda ficou abaixo dos 78,8% de estudantes na população branca de mesma faixa etária nesse nível de ensino” .

O Magazine Luiza, por exemplo, após constatar que dos 53% dos profissionais negros inseridos no quadro de trabalhadores da empresa, apenas 16% ocupam cargos de chefia, implementou um processo seletivo de trainee voltado somente à indivíduos negros, sem critérios excludentes como a necessidade de inglês fluente e experiência prévia no exterior. No fim, 19 profissionais foram selecionados e passaram por um processo de capacitação com o objetivo de serem inseridos em cargos de chefia na empresa. 

O exemplo acima evidencia que além das cotas universitárias e das ações afirmativas para contratação da população negra, para uma reparação histórica e inclusão social, não basta inserir sujeitos à margem no mercado de trabalho elitizado, é necessário também oferecer cursos, mentoria, base financeira e ensinamentos de gestão para o desenvolvimento e aprimoramento desses funcionários, para que assim, no futuro breve, estes possam estar em patamar de isonomia com os demais profissionais.

Outra ação de grande relevância, agora especificamente no âmbito do direito, é o Projeto Incluir Direito, iniciativa do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (“CESA”), recentemente vencedor da 18ª edição do Prêmio Innovare, na categoria Advocacia, que  fomenta a participação e inclusão de profissionais negros nos escritórios de advocacia. Frente ao abismo racial encontrado nas sociedades de advogados, o Projeto Incluir Direito visa oferecer aos seus beneficiários cursos com o fim de capacitar os profissionais em formação do Direito para concorrerem a vagas em processos seletivos dos escritórios associados ao CESA, voltados somente aos participantes negros do Projeto.

É inegável que iniciativas de cunho reparador são de extrema relevância para a inclusão do negro na sociedade, visto que é necessário tratar de forma desigual os indivíduos que vivenciam realidades distintas, seja oferecendo processos seletivos voltados somente à indivíduos periféricos e negros; seja pelo sistema de cotas nas instituições de ensino para fomentar o desenvolvimento intelectual e consequentemente econômico do sujeito vulnerável, que necessita de aprimoramento para maior inclusão de pessoas à margem no ambiente acadêmico. 

Por essa razão, não obstante a importância da igualdade formal estabelecida pela Constituição, necessário é que seja alcançada a igualdade material, a igualdade de fato, para que o objetivo da República seja alcançado e que o princípio da dignidade humana seja sempre sua base.  Tudo isso para que ações de equiparação histórica, posteriormente, não sejam instrumentos necessários para a inserção do negro no ambiente de classes, visto que estaremos em uma sociedade equitativa.

 

Camila Galvão, Marina Rocha dos Santos e Carla Oliveira Fernandes Silva são, respectivamente, sócia, auxiliar jurídica e estagiária do Machado Meyer Advogados.

Escrito por Redação

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