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Ortonásia e Testamento Vital: diretivas antecipadas de vontade para a morte humanizada

Artigo escrito pela Dra. Samantha Khoury Crepaldi Dufner.

O desejo de cada pessoa é ter uma vida que valha a pena ser vivida, experimentada nas melhores nuances, longa, proveitosa e sadia. Ninguém quer refletir sobre a morte – especialmente na cultura brasileira – seja pelo planejamento das questões patrimoniais via testamento, seja pela declaração
prévia dos limites do tratamento na fase terminal. Na mitologia grega é expressada como Thanatos (personificação da morte), do latim thanatus, na mitologia romana como Mors ou Leto, a morte é temida e procrastinada no pensamento coletivo como se fosse possível evitá-la.

Observamos processos variados de morte, a mistanásia que é a morte miserável a atingir milhares de pessoas de todas as idades, saúde e etnia, por questões sociais como a fome e a guerra; a narcotanásia que é a morte provocada pelas drogas; a anacrotanásia que é a morte fora de hora que decorre da ausência de saúde pública, violência, trânsito (AGOSTINI, Frei Nilo). Nenhuma delas preocupa o ser humano a ponto de evitá-las eficientemente.

De outra sorte, é possível conduzir o processo de morrer individual. Da premissa de que somos mortais, é fundamental compreender que não é a morte o real objeto de temor, mas a própria vida, ao postergar o caminho da felicidade individual, a maturidade, o envelhecimento, adiar projetos
essenciais. Importa dar sentido à existência, deixar pequenos legados pessoais aos familiares, legados profissionais à sociedade ou espirituais à humanidade, isto nos dá a sensação de ter vivido de forma digna.

Noutras palavras, viver intensamente permite-nos morrer dignamente. Enfrentando o tempo, podemos planejar o último ato de vida, traçando o que nos parece uma boa morte, um processo humanizado chamado de ortotanásia ou eutanásia passiva.

A permissividade da ortotanásia deriva do artigo 15 do Código Civil, como direito da personalidade da pessoa, e é a morte derivada das causas naturais, no momento exato de término da vida, sem prolongamentos artificiais (FRANÇA, Genival Veloso). Ninguém é obrigado, nem pode ser
constrangido a adotar tratamentos médicos e cirurgias que importem risco de vida, ou contrários à própria vontade. O valor maior está na autonomia ou autodeterminação da pessoa, que se exteriorizará nas diretivas antecipadas de vontade, enquanto gozar de plena capacidade e lucidez, nomeando quais tratamentos artificiais se sujeitará ou não se sujeitará, no instante em que
encontrar-se inconsciente e em fase terminal de vida.

A exteriorização livre, clara e inequívoca de vontade dá-se pelo Testamento Vital, que para ter plena validade e eficácia carece de observação de alguns parâmetros traçados na Resolução 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina. Primeiramente, há de cumprir-se o consentimento informado ao paciente, em linguagem simples e compreensível, a fim de que o médico possa explicar patologia, tratamentos, riscos e efeitos colaterais, subsidiando a decisão coerente. Depois, a diretiva antecipada de vontade pode ser elaborada escrita ou verbalmente, e inserida em prontuário médico hospitalar para respeito e atendimento da equipe médica.

Independentemente, em qualquer fase da vida, e antes de qualquer doença, a pessoa pode lavrar seu Testamento Vital em Tabelionato de Notas, e por escritura pública, a fim de ser executado por terceiros com segurança. A lei brasileira ao contrário da estrangeira, não exige forma, mas é prudente adotar a solenidade. Neste instrumento é importante seguir os limites da lei –
já que a eutanásia ativa é proibida e não pode ser objeto de testamento – de modo que será objeto do testamento vital somente os limites desejáveis (ou indesejáveis) dos tratamentos artificiais em caso de inconsciência ou falta de capacidade plena. (SANTOS, Maria Celeste Cordeiro).

Nesta linha estão harmonizados Direito, Medicina e Enfermagem. Nos Códigos de Ética Médica e de Enfermagem, constam dispositivos que privilegiam a ortotanásia e o respeito à vontade do paciente declarada nas diretivas antecipadas. Ambos recomendam o comportamento de benignidade humanitária e solidária pela equipe multiprofissional, na fase terminal de vida,
para fornecer ao paciente cuidados paliativos (que são manto protetor de conforto e lenitivo à dor, à psique e ao espírito do doente). A distanásia que consiste em obstinação terapêutica é desaconselhada pelos diplomas, pois é prolongamento inócuo da vida (vide art. 41 Código de Ética Médica).

Em síntese, se todos morreremos, que seja a morte o último ato de vida digna, lastreado de paz, aceitação e compreensão daquilo que não podemos mudar, cientes de ter realizado senão tudo que gostaríamos, mas pequenos legados. Importa, realmente que, o processo humanizado de morrer seja rodeado de respeito à autonomia de vontade da pessoa, e de cuidados paliativos de amigos, parentes, enfermeiros, fisioterapeutas e médicos, todos aliados para dar ao passamento seu real significado existencial, sem subterfúgios, artificialidades e mentiras. A compreensão dissipa o temor e permite o enfrentamento. Fato é que quando a vida passa a ter outro significado, a amorosidade ganha especial valor!

*Artigo escrito e publicado em 2018

SAMANTHA KHOURY CREPALDI DUFNER
Mestre em Direitos Humanos Fundamentais pela UNIFIEO; Especialista em Direito Notarial e Registral pela EPD; Advogada; Coordenadora e Professora na Pós-graduação em Direito de Famílias e Sucessões do Proordem Goiânia. Professora de Direito Civil em cursos de pós- graduação e preparatórios para OAB. Pesquisadora do Grupo Biòs PUC-SP. Autora de obras e artigos jurídicos.

Escrito por Redação

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